A estreia de Hebe - A Estrela do Brasil mostra que, por trás da apresentadora havia uma mulher que nunca deixou de ser fiel aos seus princípios.
Redação Publicado em 17/09/2019, às 18h09 - Atualizado às 22h16
Minha mãe, dona Luiza, era uma das fãs mais ardorosas do programa que Hebe Camargo teve durante toda a sua carreira na televisão. Eu, adolescente, nunca tinha entendido o motivo pelo qual ela gostava tanto de um programa que, na minha opinião, era brega, exagerado.
Uma vez, perguntei a ela o motivo de idolatrar Hebe. Ela me respondeu sinceramente: “É porque a Hebe fala tudo o que tem que falar, ela é honesta”.
Ela sempre lembrava com carinho das noites de segunda que passava na companhia dos mais diversos artistas, prestando atenção em cada palavra dita por aquela mulher que era, acima de tudo, um ícone.
A estreia de Hebe – A Estrela do Brasil mostra que, por trás daquela apresentadora que poderia ser interpretada como cafona – e muitos veículos diziam isso mesmo dela no passado – havia uma mulher com problemas pessoais, mas que nunca deixou de ser fiel aos seus princípios.
No filme, Hebe é interpretada por Andrea Beltrão, uma das atrizes mais conhecidas do país e que sempre teve um tino maior para a comédia. Aqui, no entanto, ela usa todo o seu arsenal de talento para entregar uma atuação sobrenatural. Andrea não imita Hebe: ela incorpora as expressões corporais, a fala, a entonação e, sobretudo, a personalidade ao mesmo tempo forte e simpática que ela tinha tanto na frente quanto atrás das câmeras.
No longa, acompanhamos um recorte da trajetória de Hebe em seus mais de 50 anos de televisão: um momento específico nos anos 80, quando acossada pela censura, resolve sair da Bandeirantes. Ao receber uma oferta de Sílvio Santos, ela resolve voltar a apresentar um programa, ao mesmo tempo em que precisa lidar com vários problemas pessoais que ela enfrenta com a gana e a fé que sempre demonstrou ter.
A interpretação de Beltrão é uma força da natureza, um furacão. Com ela na tela, temos a impressão de estarmos assistindo a Hebe real, com sua gargalhada e seu jeito absurdamente sincero, quase desconcertante. A apresentadora era conhecida para além das roupas extravagantes e jóias caríssimas, mas também pela incontinência verbal dentro e fora da televisão – justamente o que lhe trouxe problemas com a censura federal vigente na época.
Fosse um trabalho que almejasse uma carreira internacional, Beltrão teria reconhecimento a vários prêmios de atuação, tamanha é a sua presença durante o longa. Chega a ser impressionante como ela “desaparece” debaixo da personagem, nos fazendo crer que estamos assistindo a um documentário, e não um filme com atores.
A maior coragem do filme reside, no entanto, no desenvolvimento de seu roteiro. Hebe – A Estrela do Brasil não quer “passar pano” para a história da biografada, pelo contrário: mostra as suas contradições e suas frustrações.
É emblemática a cena em que o filho de Hebe, Marcello (interpretado por Caio Horowicz de forma inspirada) confronta a mãe antes dela receber Paulo Maluf para um jantar de Natal. Como aquela mulher, que defendia o fim da corrupção e da impunidade e era contra a censura, fazer campanha para um político apoiado pela Ditadura Militar?
Além disso, também mostra a fragilidade do casamento de Hebe com Décio Capuano (papel de Marco Ricca, monstruoso), em que o ciúme possessivo impedia uma relação saudável, ao mesmo tempo em que ela, sempre apegada a sua fé, hesitava em tomar alguma atitude a respeito. Não se pode esquecer também da presença de seu braço direito de toda a vida, Claudio Pessutti, sobrinho de Hebe, e que é interpretado por Danton Mello com delicadeza.
A defesa que Hebe fez dos excluídos pela sociedade também é um ponto alto do filme. As posições da apresentadora sempre foram bem conhecidas, levando em seu programa pessoas que os outros queriam evitar, como Roberta Close e Dercy Gonçalves (em uma participação hilariante de Stela Miranda). O arco dramático com seu cabeleireiro Carluxo (papel de Ivo Müller) é um dos pontos de maior emoção do longa.
Tudo isso é mostrado no filme sem rodeios, de forma direta, como era quando ela apresentava seus programas – que fazia questão que fossem ao vivo para ter a oportunidade da conversa “olho no olho” com o espectador. O roteiro de Carolina Kotscho não pega leve com Hebe, mostrando esses pequenos detalhes que humanizam, ainda mais, a figura da apresentadora. Poucas produções biográficas brasileiras tiveram tamanha coragem.
Se há um problema em Hebe – A Estrela do Brasil é o seu terceiro ato, o momento do clímax, onde as histórias são resolvidas. Depois de acompanharmos todos os problemas pessoais e profissionais de Hebe, e ficarmos esperando o momento em que todos os nós de sua vida até então fossem de alguma forma resolvidos, o roteiro e a direção de Maurício Farias nos entrega uma resolução relâmpago: em pouco mais de 10 minutos, o filme é inteiramente desatado.
Entende-se de que a vida da biografada tinha diversas passagens marcantes, e que de fato seria um problema condensar tudo isso em pouco mais de duas horas de projeção. No entanto, ficou faltando o famigerado “punch”, ou seja, o momento de catarse para o público, onde – para o bem ou para o mal – a protagonista tivesse o seu momento. Apesar da direção de Farias ser classuda, elegante e de extremo bom gosto, nesse quesito o longa ficou devendo.
Nada disso estraga o resultado final, no entanto. Mais do que uma homenagem à Hebe Camargo, o filme é uma celebração da liberdade, do amor e da sinceridade, marcas registradas dessa personalidade que mantém o brilho de sua estrela até hoje.
Dona Luiza é a prova disso: Hebe Camargo morreu em setembro de 2012. Minha mãe, uma de suas grandes fãs, morreu no último mês de agosto. Até o fim, ela manteve a admiração e o respeito por quem, em sua visão, defendia as causas corretas e por isso mereceu o seu respeito. O de todo o Brasil, afinal.
* Luiz Henrique Oliveira é jornalista e crítico de cinema.
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